22 de junho de 2009

Ilha de Maré no Cobrecos 2009


Ilha de Maré: Relato de Vivência

Por Janine Falcão - UNEB/ Salvador/BA

Durante o XVI Cobrecos, realizado em Salvador, os congressistas participaram de vivências em comunidades com perfis diversos. Ilha de Maré, área que incuba mobilizações de pescadores e marisqueiras, foi uma dessas comunidades.

A Ilha, que está localizada na baia de Todos os Santos, é dona de uma biodiversidade que reúne mar, mangue e mata. Seu território pertence a Salvador, o que torna os Poderes Executivo e Legislativo da capital baiana responsáveis pela administração da localidade. E a região conta com a atuação de associações que tem como fim dialogar sobre os conflitos e as necessidades locais; além de buscar soluções para estas questões ou impasses, seja a partir de atuações naquele micro ambiente ou a partir de medidas que visem a chamar a atenção dos órgãos públicos (costumeiramente atentos, quando muito, às necessidades expostas pela capital).

A Vivência
A experiência em Ilha de Maré foi intensa, instigante e contraditória. Foi possível observar sem máscaras, preparativos ou quaisquer adaptações à nossa chegada, o que é a realidade local.

A nossa chegada à Ilha foi, no mínimo, atípica. Após cerca de uma hora e meia cumprindo o trajeto da viagem, considerando ônibus e travessia de barco, deparamo-nos com uma região “problemática” (se observada a partir do referencial urbano, industrial, moderno e tecnológico que impera nas grandes cidades, especialmente, em cidades como Salvador, beneficiadas com Planos Diretores futuristas, progressistas e, por que não, oportunistas) . Sob uma forte chuva olhávamos pequenas construções com inacabadas, tetos baixos e esgoto a céu aberto. [...] Caminhando entre as casas que se apresentaram no início da Ilha era perceptível a discrepância entre aquela região e as áreas nobres dos centros urbanos. Discrepância ratificada quando após cerca de 30 minutos de caminhada, depois de passagem estreitas com muros à esquerda e mata a direita, avistamos um mar digno da exclamação: Perfeito!

A paisagem era bela e andando pela areia dava até para esquecer questões como mobilização, política, movimentos sociais etc. [...] Mas o encanto não nos impediu de tornar à realidade. Sim. A modernidade, diferente do que inicialmente pareceu, chegou à Ilha de Maré. Com quilos de ferro, longas extensões de plataforma, contentores, encanamentos e muita fumaça.

O Porto de Aratu atua no fornecimento de cargas – produtos líquidos, sólidos e gasosos – para o Pólo Petroquímico de Camaçari, o Centro Industrial de Aratu (CIA) e o Complexo da Ford de Camaçari. Instalado à costa leste da Ilha de Maré desde 1975 a organização mantém uma relação complexa com a população local. Pelos relatos dos moradores não são desenvolvidos na área projetos ou políticas visando ao desenvolvimento local, ao beneficiamento dos cidadãos da Ilha, à preservação da região ou qualquer ação dita, conforme os vocábulos na contemporaneidade politicamente adequados, socialmente responsável. [...].

Mais um fator que tem agravado a relação entre o Porto e os moradores da Ilha são as interferências que as atividades do Porto têm ocasionado nas principais atividades econômicas da região: a pesca e a mariscagem. Novamente segundo moradores o número de peixes e mariscos vem caindo anualmente, o que acredita-se ser uma conseqüência da manipulação de poluentes na região. [...].

Deixando o Porto e seguindo em direção ao mangue notamos as raízes aéreas, a areia fofa, as pequenas “piscinas” naturais e sentimos os nossos pés afundando no mangue. Visões e sensações que fizeram daquele momento uma espécie de descobrimento para grande parte do grupo. Como se não bastasse, os pequenos caranguejos que formavam um tapete levemente avermelhado pelo qual nossos pés escorregavam davam àquela vivência uma aura mágica. Podíamos acompanhar o início da vida no mangue, o início da vida na Ilha. Isso seria esplendoroso não fosse o descaso com a vida dos seres humanos que vivem do mangue.

Para quem nasce em Ilha de Maré e pretende manter-se na região, cultivando as tradições, a cultura, os hábitos, não há muitas opções que distem do mangue ou do mar. Os homens, quase sempre, tornam-se pescadores. As mulheres, quase sempre, assumem-se marisqueiras. Ambos buscam sempre o sustento de suas famílias e o cultivo de suas tradições.

Enquanto os pais vão pescar e as mães mariscar seus filhos se divertem na imensidão da Ilha, sem tomar conhecimento dos perigos que esta guarda. Durante a maré baixa é possível improvisar campo de futebol, quadra de vôlei, espaço para brincar com os amigos e ver o tempo passar. Quando a maré enche a história é outra... O risco de afogamento é grande, e o temor dos pais também, sobretudo porque alguns já tiveram seus filhos inesperadamente, levados pela maré... [...].

As condições de acesso e circulação na região são precárias. Não há vias delimitadas, trilhas sinalizadas ou quaisquer outros meios que possibilitem caminhadas pelo local de forma confortável ou segura. Durante a vivência passamos por áreas ora estreitas, ora altas e sem proteção, e mesmo por troncos de árvores utilizados de forma improvisada como pontes. Nota-se, portanto, que pessoas com dificuldades de locomoção, seja por uma deficiência ou por idade, bem como crianças, estão sujeitas a acidentes durante o trajeto proposto ao grupo. Isso para não dizer que em alguns casos o deslocamento é praticamente inviável, considerando, por exemplo, que alguém que utilize cadeira de rodas não teria como passar por um tronco de árvore. As condições (ou seria a falta?) de deslocamento na região acabam por cercear o direito constitucional de ir e vir, garantido pela Carta Magna em que consiste a Constituição Federal, a todo cidadão brasileiro.

Seguimos a nossa caminhada. [...]. Incessantemente éramos confrontados: de um lado a fadiga e o desgaste, do outro as belas paisagens que pareciam querer servir como recompensa. Decerto que para quem já “está habituado” é muito mais fácil que para nós, inexperientes, percorrer as nove comunidades que compõem a Ilha de Maré. Entretanto, “estar habituado” não pode ser justificativa para a omissão do Poder Público. [...]

Durante toda a nossa caminhada não vimos hospitais, nem mesmo um pequeno posto de saúde, o que permite-nos insinuar que em uma situação emergencial o cidadão e a cidadã de Ilha de Maré terão o direito à saúde e a vida negados, visto que dependendo da razão pela qual o atendimento médico necessite ser acionado, o tempo de deslocamento até o hospital mais próximo seria superior ao que o indivíduo suportaria aguardar.

Na Ilha não há a invasão por computadores, internet, vídeo games, celulares. As crianças ainda tem alguma infância, e brincam de correr, de empinar pipa, de roda, gude e bola... Numa dessas distraídas ocasiões, uma criança acabou sendo vitimada ao não conseguir atravessar para o lado oposto ao mar durante a cheia da maré, que ocorre todo fim de tarde (daí o nome Ilha de Maré). Sensibilizados pela perda e indignados com a ausência do Poder Público na região, os moradores uniram-se para construir a escola creche comunitária. O objetivo era que este espaço fosse, como, aliás, tem sido, uma ambiente em que as crianças tanto pudessem ser educadas formalmente, quanto cuidadas na ausência de seus pais, evitando as possibilidades de novos acidentes.

A luta pela construção da creche escola, já que as escolas públicas de Salvador só aceitam crianças a partir de 07 anos e as mães precisavam deixar seus filhos para mariscar, contou com o apoio de uma instituição chamada Ágata. E foi a partir dessa parceria que os moradores da Ilha de Maré conseguiram construir e hoje mantêm a única creche da região, que funciona com ajuda de voluntários da comunidade e de professores contratados com verba disponibilizada pela Ágata.

A biodiversidade da região apesar de não conseguir atrair a administração municipal atrai a atenção de turistas e daqueles que investem no setor. Entretanto, consciente do qual invasiva pode ser esta atividade, sobretudo quando desenvolvida a partir da perspectiva meramente econômica, o movimento de pescadores e marisqueiras da Ilha de Maré tem buscado alternativas turísticas.

A associação mantém o diálogo constante com a comunidade a fim de preservar as características locais, bem como desenvolver um processo educativo amplo por meio do qual a região seja valorizada pelos moradores e, logo, tenha maior possibilidade de ser preservada ante as iniciativas oportunistas de investimentos turísticos. Da mesma forma, por se tratar de uma área que congrega mar, mangue e mata tem-se buscado o desenvolvimento da atividade turística visando à minimização da agressão ao meio ambiente. [...]

Mobilização em Ilha de Maré
Apesar das dificuldades apontadas a Ilha de Maré conta com a atuação do crescente movimento de pescadores e marisqueiras. É verdade que não há unidade entre as nove comunidade que habitam a Ilha, uma vez que enquanto aproximadamente seis comunidades lutam, por exemplo, para serem reconhecidas como comunidades quilombolas as demais não tem interesse nesse reconhecimento.

Foi possível observar que as relações de poder, bem como os interesses econômicos, são os principais motivadores para este posicionamento. As comunidades que desejam esse reconhecimento são as que aparentemente lutam para manter suas expressões culturais, artísticas, as tradições, incluindo a pesca e a mariscagem. Já as comunidades que apresentam menor identificação com esta realidade não se unem a este movimento. Ao contrário, priorizam o desenvolvimento turístico da região (longe da perspectiva anteriormente citada) e a modernização desta. São regiões que já abrigam casa maiores, quase sempre sobrados, que servem como pousadas para turistas e curiosos. O mais interessante é que, segundo moradores, muitos dos proprietários dessas pousadas são estrangeiros que fixaram-se na região e montaram o seu próprio negócio, sem ter nenhuma relação ou identificação com a cultura local e, muito menos, com as necessidades locais.

Apesar disso, o número de adeptos à associação é grande, os encontros são frequentes e o número de jovens simpatizantes ao movimento tem aumentado. Destaca-se, ainda, o fato de que a mobilização na Ilha ser liderada, essencialmente, por mulheres e em sua maioria negras.

*Imagem: Fonte Google

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